Minha aldeia

terça-feira, 27 de setembro de 2011


"Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo... Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura..." Fernando Pessoa

Lembro da minha chegada a essa cidade. Eu era apenas uma menina que não entendia o motivo de abandonar meu chão, a terra dos meus pais, amigos, escola, família, toda uma vida por trilhar em caminhos já conhecidos em nome do que pra mim, então, era apenas um devaneio.
Tenho fortemente guardado em minha memória o dia que saí da minha cidade. Acordei cedo, fui até o quintal, subi no pé de seriguela do muro e chorei. Olhava todo o quintal, revia as brincadeiras e os sonhos compartilhados alí, com minhas amigas. Depois fui até a casa da última de quem faltava me despedir. Minhas três melhores amigas estavam lá. Elas choravam. Eu quis chorar também, mas não pude. Quis por um segundo guardar aquela cena, nós juntas, um todo.
Lembro meus pais me dizendo que aqui tudo seria diferente, melhor. Lembro também dos primeiros dias, das privações, do medo de sair às ruas, da escola nova.
Eu, um bicho do mato, achava essa cidade monumental e, como tudo o que é bem maior que nós e nosso mundo, perigosíssima.
Minha Primeira amiga da escola só virou minha amiga depois de querer me bater. Meu novo grupo debatia até o jeito como eu amarrava meu tênis e como falava. Eu era uma estranha e aprender a sobreviver na selva não foi fácil.
Mas eu consegui, fiz amigos, viajei, lutei, comprei brigas e venci grande parte delas. Entrei na universidade, algo impensável no meu caminho em Belém. E foi nessa época em que eu mais vivi. Sonhei, amei, sofri, chorei(e como eu chorei), amadureci.
Aprendi a amar pessoas, lugares.
Tive que, por necessidade, aprender a conhecer cada canto dessa cidade, suas gentes, seus ritos.
E irremediávelmente me apaixonei por ela!!!
Hoje consigo entender o que meus pais diziam. Não esquecí minhas origens e sei que foi a partir delas que solidifiquei minha base, mas foi aqui que me forjei a mulher que hoje sou.
Não consigo imaginar como seria minha vida sem os 16 anos em que vivo aqui. Possivelmente teria vivido uma vida tacanha. Também não gosto da idéia de viver longe daqui, mesmo que à distância de um cruzar da ponte.
Hoje vejo esse chão e me sinto tão pertencente a este lugar quanto seus demais 293.925 habitantes e sinto um extremo orgulho de fazer parte disso tudo.
Por tudo isso e pelo amor infindável a essa cidade, parte pulsante de mim, um vídeo com algumas das coisas que mais amo e que avisto daqui do alto da minha aldeia.

"E a poesia só espera ver nascer a primavera..." Vinicius de Morais

É primavera!!!
Poderia dizer da beleza da estação, dos dias quentes e ensolarados mas sem aquele calor escaldante de morte. Podia falar das flores e borboletas nos jardins, das cores a se espalhar por tudo, mas não...
Queria mesmo falar é da sensação que me invade a cada novo começo de primavera. É como a música onde as boas novas andam nos campos.
Primavera me remete, irremediavelmente, ao mito de Perséfone e Hades e, por quê não dizer, de Deméter. Pra mim é assim, essa sensação da volta do amor que Deméter sente quando sua filha volta do hades para passar metade do ano com ela, que eu sinto. É ver tudo a sua volta se colorir em festa pra essa chegada. É a vontade de ficar o dia todo, todos os dias ouvindo música bacana, lendo Vinicius de Morais e sonhando com os votos de amor jamais sonhados.
É a alegria dos bichos e o canto dos passarinhos a cada manhã de sol. É o nascer do sol no Rio São Francisco. É o insano desejo de amar o mundo e receber amor de volta e uma preguiça danada de amar o mundo.
É a esperança renascida, o começo de um radioso ciclo, beijar na chuva, ver um rosto se iluminar ao sol.
É um sopro profundo de vida.
Eu, Vanessa, nasci na primavera. Não podia ser diferente.
É nela que abro minhas asas ao sol.
Pra mim não é a toa que essa seja a época de maior inspiração para as paixões (sem contar com o carnaval, claro!), é como se tudo estivesse apaixonado sem ter por quê ou por quem.
E eu, cá no meu canto sigo, celebrando a primavera, as cores,  as flores e cheiro de amor que elas deixam pelo ar...

Segue o texto que eu queria ter escrito mas que é de Cecília Meireles

                                                        Foto: Fabrício Francisco
Flor de Mandacaru

Primavera
Cecília Meireles


A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.

Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.


Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.

Parada da diversidade em Petrolina

A parada da diversidade em Petrolina traz consigo a marca da alegria e do respeito. O que vimos foi uma multidão que, independente da orientação sexual, celebrava o amor. Esse amor se exprimia de várias formas. Desde o beijo ou carinho dos casais, passando pela alegria das drags, as mães levando os filhos para ver a parada, as cofraternizações de amigos, até na senhora que foi levada pelos netos adolescentes pra ver de perto toda a forma de amor.
A segunda edição do evento coloriu as ruas do centro e deixou pra traz o ranço do preconceito comum em todo país e fortalecido aqui pelo aspecto interiorano. Com isso não quero dizer que findaram-se as ofenças gratuitas e o desamor daqueles que temem o diferente, que se sentem intimidaos por tal. No entanto percebo um avanço significativo no campo do debate sério, à luz da razão. No campo do debate de gênero e sexualidade as mulheres já avançaram bastante em institucionalizar políticas públicas e garantir uma legislação que ampare suas demandas, enquanto que os homoafetivos ainda brigam por garantir o mínimo de respeito e de direitos que deveriam ser garantidos num estado laico.
A pretensão de uma suposta supererioridade heterosexual cai por terra diante do evento vivenciado na cidade. Uma celebração composta em grande parte por heteros que compreendiam o valor do respeito ao direito do próximo. Uma caminhada pela paz e em paz.
Em tempos onde a igreja católica reafirma o atraso com o recente discurso medieval do papa onde condena a diversidade em troca de dogmas já superados até pelo senso comum, esse encontro é vital pra reascender a chama da igualdade de direitos mesmo entre os desiguais e reafirmar Milton Nascimento quando diz que: "Qualquer maneira de amor vale a pena, qualquer maneira de amor vale amar... "